Por Rodolfo Viana: Artista-Pesquisador e Doutor em Comunicação.
Na sexta passada, fui ver um espetáculo que prometi dizer realmente o que acho para o amigo do elenco. Morando em São Paulo por cerca de 1 ano, e, vindo do Rio de Janeiro, aviso que sou uma pessoa apegada aos clichês brasileiríssimos que só o meu Rio entrega. Sou um clichê, logo, a paixão pelo carnaval carioca me faz amar a zona e a desordem.
Confesso só aqui certo sadismo em ver a plateia aperriada pela proposta de troca de lugar dentro do teatro, para mim, já é um ótimo começo para sacudir a falsa ordem que São Paulo finge entregar ao Brasil. A comparação é boa pela metalinguagem. Primeiro, porque se introduz formas de ver um espetáculo de gênero contemporâneo, dentro de um teatro, sem abertura de cortinas, com os artistas nos recebendo, sem compromisso com a ordem esperada dos acontecimentos. Inclusive - o seu lugar -, pois o espectador é convidado a ver o espetáculo na modalidade arena, dentro do palco. A cena que nos recebe é a de um teatro que irá encenar um circo.
Um prelúdio interesse, porque, “respeitável público” vem aí: Brasil. Então, não espere uma narrativa linear. É o mesmo Brasil que nos promete os infinitos insumos do carnaval, especificamente, o carnaval de Mangueira: o Brasil de “Marias, Mahins, Marielles e Males”. Ou, se quisermos uma chave de leitura para nos guiar um pouco, escute a canção “A cara do Brasil”, só a conheço na voz de Ney Matogrosso. Mas, preste atenção no começo da música, porque ela traz uma energia das fanfarras, com sons de trompetes e uma certa sensação de que você vai ser engolido por coisas sensacionais. O Brasil que a companhia apresenta, é o Brasil que é sentido, porque sejamos franco, a gente é muito mais interessante quando é sentido, do que quando é explicado. É a mesma coisa com as linguagens contemporâneas: sinta, perceba, e pare de esperar continuidades ou lógicas narrativas arrumadinhas, agarre-se em alguma corda, porque há um encontro riquíssimo e complexo de cenas que querem a encruzilhada, caso do circo, do carnaval, do teatro, da dança.
Além dessas macro cenas que consigo apreender, há uma expressão em francês interessante, é o “mise en scène”, é aquela identificação referencial que fazemos de onde vem uma cena por meio de seus elementos dramáticos, ou seja, o espetáculo “23 Fragmentos desses últimos dias”, fruto da colaboração das @instrumentodever e @letroisiemecirque, “vai e volta na contramão” - de novo, escute “A Cara do Brasil”. Em muitos momentos é feito e desfeito um número mediado por expressões populares, sensíveis e poéticas de profundo esbanjamento de potências de nossas marginalidades culturais, tudo por meio de “mise en scène”.
Vendo o espetáculo, me ocorre um aviso ao espectador: somos criaturas que sentimos e, de vez em quando, pensamos. Nessa ordem. E, sem precisar fazer oposição em sentir e pensar, nesse caos contemporâneo, em que parece que dentro de nós tem um carnaval em plena ordem e desordem também - o espetáculo nos encontra com a poesia do movimento em diversos de seus fragmentos. Descrevo alguns, e especialmente, aqueles, em que sem explicação, me emocionei com a poesia sem palavras. Apenas corpo em ato.
Imagine garrafas de vidro transparente enfileiradas, uma atrás da outra. Vi uma artista caminhar por cima dessas garrafas com um tamanco, destreza e equilíbrio, ao final da caminhada, uma flor é posta na última garrafa. Vi uma cena onde o artista caminhava pisando em brinquedos infantis que apitavam, cujo último, era uma galinha com aqueles gritos que imprimem comicidade, e justo por isso, no grito estendido da galinha de brinquedo muito conhecida de memes da internet, que uma música melodramática assume a atmosfera e o bailarino começa a fazer o caminho contrário da fileira de brinquedos. Mas, pisando nos espaços, as contorções, destrezas e, novamente, equilíbrios, me pareceu aludir a dramática etapa da vida que é caminhar. Está lá pra ver o ato - trata-se de um artista preto retinto, que na multiplicidade de seu corpo, pisa numa galinha que berra e parece parir e dali por diante há a complexificação de uma caminhada entre os espaços. É um corpo que por meio do artifício do equilíbrio desenha o caminho com volteios.
Laroye, minha gente! Exu.
Os corpos que dançam por essas terras brasileiras; e ainda, dramatizam a temática Brasil, merece ter o artifício do equilíbrio olhado por uma lupa. Tem um jeitinho, “um faz que vai mais não vai”, o drama está no gesto que faz prosa gestual. E, lógico, o equilíbrio é o óbvio artifício de artistas performáticos que se apropriaram da dança para criar poesia. No entanto, existe “uma história que a história não conta” que é a continuidade e o desenvolvimento de saberes corporais negros que em algum momento do passado de vida foram dados aos artistas @marcomottaart e @andreoliveiradb; por eles, recebidos e pela trajetória de vida corporal deles, foi desenvolvido algo que é oferecido de volta ao mundo. É um ciclo exuzíaco cuja tríade é dar-receber-devolver, abordagem de “Pensar Nagô”, de Muniz Sodré.
Sendo eu um pesquisador interessado em marginalidades expressivas corporais, especialmente, aquelas vivenciadas no Rio de Janeiro, por pessoas negras das cenas do funk, das danças de sambas de enredo, do vogue, que inclusive ocupa o carnaval das escolas de samba, tema de um de meus estudos, digo que vi em um dos fragmento um sensível dueto entre os dois artistas. Presos por um elástico em seus pés, um atrás do outro, em fileira, depois de frente, foi a hora que o equilíbrio e a tensão do elástico expressavam uma conexão, literalmente elástica, entre as negruras. São de saberes e trajetórias completamente distintas, mas há ali o elástico entre os dois. Fica a oferta de leitura do ato onde você deve imaginar uma favela carioca e a brincadeira do pulo no elástico. Vi quando criança elásticos amarrados em postes ou nas pernas dos brincantes com o intuito de subir da canela pra cima e pular com cada um dos pés no elástico. Até, - é claro -, o limite mais alto que é o pescoço.
Que a dança contemporânea bebe no cotidiano e nas memórias para se criar, para este universo artístico: “todo mundo já sabe”. Ao mesmo tempo, precisamos muito de poéticas que nos informe um pouco que tem flor no final de uma caminhada sobre garrafas de vidro. Porque também dominamos com nossos corpos um variado espectro de equilíbrios, frente a única verdade que escolho acreditar que existe, que é a gravidade. Essas vivências corporais imprimem a todos os artistas reelaborações sensíveis de suas vidas. Significa que estão pegando um passaporte para algum lugar do passado pela lente do gesto. São suas escrevivências, como diria Conceição Evaristo.
A poesia de André Oliveira tem a tarefa quase impossível de se empinar uma pipa dentro de um teatro. “Vai dar ruim!”. Então: “Uiiii”. “E vamos de novo”. Força com precisão e sim, um possível: dá pra empinar pipa dentro de um teatro, porque são corpos que sabem investigar esse gesto - o do dibicar.
Nas leituras que tive em contato durante minha pesquisa de doutorado existe a sensação de que há uma avalanche poética oriunda das vivências marginais que será a boca que tudo come. Uma força que agora se insurge diante de uma sociedade que tem no mínimo um debate posto sobre a ordem e a desordem do mundo. E o espetáculo, simplesmente diz: “o que está aqui é só um fragmento tá”. Quero finalizar essa reflexão - igualmente - fragmentada, conectando duas gramáticas negras, nesta data de hoje, 26, de junho, de 2023. O Afrofuturismo que vi na Exposição “Revenguê: A Sétima Cena da Pretofragia”, de @yhuricruz, no @museudeartedorio com a sofisticação do ato aéreo de André Oliveira que partindo do desenvolvimento autoral do Passinho, nos reapresenta, em uma espécie de tempo congelado o que é o gesto e o equilíbrio dessa dança carioca. É como se pudéssemos ver em câmera lenta, “um gestinho pequinininho, só que grandão”. É uma reelaboração poética do passinho que faz contratempos tão lentos, quanto acelerados, tem dupla-face, como diria Leda Martins, mulher preta e uma das principais dramaturgas brasileira. E o afrofuturismo com tudo isso? É que o mexer faz ver um outro tempo, o mexer faz ver um outro espaço, o mexer estabelece outra relação com a gravidade e a música. Música, quero lembrar, que sempre foi bem eletrônica. Os ruídos do funk escolhidos do sample são aqueles que ocupam os buracos negros e os buracos quentes. Palmas efusivas para @maroussiadiazverbekepro @btonoki @juliahjuliah @lucascmaciel @moraesmaira nesse trabalho vocês dão concretude de otimismo ao nosso presente.
Sigo ainda emocionado com a potência poética do que vi do começo ao fim.
Brabos! Obrigado pelos fragmentos de futuro.